Em uma fazenda com quase 90 anos, pai e filha vivem cercados por vacas leiteiras, galinhas e mais de 15 mil peixes, enfrentam mata fechada, lembranças de onça, muito trabalho diário e transformam uma casa antiga em paraíso simples, produtivo, acolhedor para toda a família rural e guiado pela fé
Desde 1935, quando os avós de Hervécio ergueram a casa simples de madeira no alto do morro, a propriedade atravessa gerações como um retrato vivo da roça brasileira. Hoje, é a parceria de pai e filha que mantém de pé a fazenda de nove alqueires, com curral, represas cheias de peixe, galinheiro movimentado e pastos cercados por mata nativa preservada.
Em 2020, com a pandemia interrompendo as aulas presenciais, Andressa deixou a cidade e decidiu voltar para o campo ao lado do pai. Mesmo depois da retomada das aulas, no fim de 2021 ou início de 2022, ela optou por continuar na fazenda, acordando antes do amanhecer para tirar leite, cuidar da casa e estudar, em uma rotina que une responsabilidade, afeto e um forte senso de propósito compartilhado entre pai e filha.
Pai e filha em uma fazenda de quase 90 anos

A fazenda onde pai e filha moram foi construída por volta de 1935 e já abrigou quatro gerações da mesma família.
Primeiro os avós, depois os pais de Hervécio, em seguida os 14 irmãos e, agora, as filhas e os futuros netos, como ele próprio sonha em ver crescendo no mesmo quintal.
Hervécio, hoje com 51 anos, conta que foi criado ali, em meio ao trabalho pesado desde a infância, mas sem perder a alegria.
Ele recorda que, quando pequeno, ajudava na fabricação de rapadura, no plantio de milho e feijão e no manejo do gado.
Hoje, ele resume a própria filosofia com uma frase que repete sempre: “A gente pode escolher ou viver triste ou viver alegre. Eu escolho viver alegre.”
Andressa, de 17 anos, é a mais presente na rotina do pai. Irmãs mais velhas moram na cidade, uma delas em Portugal, e outra estuda Medicina Veterinária.
Com a saída das irmãs, a gestão da casa e da lida diária ficou concentrada na dupla.
“É só nós dois na lida”, resume a jovem, que descreve o pai ao mesmo tempo como pai, amigo, colega e companheiro de trabalho.
Rotina pesada entre vacas leiteiras, galinhas e 15 mil peixes

O dia de pai e filha começa ainda de madrugada, por volta das 6h. No curral, 13 vacas leiteiras garantem entre 90 e 100 litros por dia, entregues a um laticínio da região por cerca de 2,60 reais o litro.
O leite é a principal fonte de renda da casa e sustenta todo o restante da produção: compra de ração, manutenção das cercas, trato das galinhas e dos peixes.
Andressa ajuda a conduzir as vacas para o canzil, separar bezerros, cortar cana e preparar o trato.
Ela relata que, desde criança, insistia para participar da ordenha, mesmo quando ainda “mais atrapalhava que ajudava”. Hoje, é responsável por parte significativa do serviço:
“O leite é a parte mais fácil, difícil é manter curral limpo, cortar cana, jogar no coxo, cuidar de tudo ao mesmo tempo.”
Depois da ordenha, a jovem volta para casa, prepara o almoço, lava louça e organiza o interior da casa antes de seguir para a escola, onde estuda no novo ensino médio das 12h30 às 18h.
Ao retornar à noite, termina o serviço doméstico que não coube de manhã, como lavar roupas e manter o quintal em ordem.
Segundo ela, “na roça o tempo falta, na cidade sobra”, resumindo o contraste entre a rotina rural intensa e os dias em que vivia em área urbana.
No quintal, o cenário é dominado por uma grande represa, com cerca de dez anos de existência, abastecida por nascente e por um sistema de bombeamento movido a energia solar.
Ali, eles criam tambaqui, tambatinga, tambacu, carpa capim, traíra e tilápia. Hervécio estima que existam mais de 15 mil peixes nos tanques, distribuídos ao longo da propriedade.
Parte da produção é pensada para consumo próprio e, no futuro, para venda em sistema de pesca e pague.
As galinhas caipiras circulam soltas pela fazenda, alimentadas com milho e o que encontram no mato. Os ovos, muitas vezes ainda sujos de terreiro, reforçam a rusticidade do sistema:
“É caipira de verdade”, comenta o produtor, que vende alguns pentes, consome em casa e, às vezes, abate aves para a própria alimentação.
Mata fechada, histórias de onça e infância marcada pelo trabalho
A fazenda é cercada por uma mata fechada, com trilhas, córregos, coqueiros e árvores de grande porte, como um jequitibá que Hervécio estima ter dezenas de metros de altura.
O produtor costumava subir no tronco quando era mais jovem e hoje vê o lugar como um reduto de saúde e tranquilidade. Para ele, “quem anda descalço aqui no meio da mata vive mais, pega energia boa da terra”.
Desde criança, ele convive com a floresta como cenário de trabalho e de medo. Um dos episódios que mais recorda é o caminho até um terreno distante, em que precisava levar sal para o gado caminhando por um mato ainda mais fechado que o atual.
“Eu tinha um medo de cobra e um medo de onça danado”, lembra, afirmando que qualquer barulho na mata o fazia “ver onça na frente” só de medo.
Ao mesmo tempo, a mata era espaço de brincadeira: colher coco, rachar no machado para comer a amêndoa, caçar “piolho de urubu” na terra, montar arapucas e improvisar brinquedos com o que havia disponível.
A infância, marcada por trabalho intenso, é lembrada com certa nostalgia.
Ele diz que, na época, a família via como sofrimento, mas hoje reconhece que “trabalhava muito, mas era feliz demais, só não entendia na hora”.
A mata também foi palco de acampamentos organizados por Andressa e as primas.
Em uma dessas vezes, montaram barracas e levaram mantimentos para dormir fora, mas uma chuva intensa durante a madrugada transformou o programa em aventura com retorno às pressas para casa.
As lembranças reforçam a relação íntima da família com o território e a natureza que os cerca.
Casa antiga, chão vermelho e lembranças de quatro gerações
A casa principal da fazenda, construída em 1935, mantém boa parte das características originais.
Há um piso de chão vermelho encerado em alguns cômodos e um assoalho de madeira em outros, além de forro de esteira de taquara no teto.
As portas e janelas, largas e altas, foram lavradas à mão, provavelmente com machado, como lembra Hervécio ao observar as marcas nas peças.
As paredes antigas, em alguns pontos com reboco caindo, são tratadas como parte da estética rústica da construção.
“É bobagem tampar tudo, faz parte da história da casa”, comenta a família, que fala em reformas pontuais apenas onde a umidade ameaça a estrutura.
A casa já abrigou os avós, os pais, os 14 irmãos e, depois, os três filhos de Hervécio.
As noites, antes cheias de vozes de crianças, hoje são mais silenciosas, mas guardam memórias de quartos divididos, conversas prolongadas e histórias contadas até tarde.
Andressa recorda que dormia com as irmãs em camas lado a lado e que o pai era convocado para narrar casos até que todas adormecessem.
“Quando ele cansava, começava a contar história de terror para ver se a gente deixava ele dormir”, brinca.
A relação entre pai e filha continua marcada por esse humor constante.
Ele se define como “boneco doido”, personagem criado a partir de apelidos entre amigos e parentes, e afirma que prefere levar a vida rindo.
As piadas, causos e memórias contadas à beira do fogão a lenha ajudam a quebrar o ritmo pesado do trabalho e reforçam o vínculo afetivo entre os dois.
Fé, planos de pesca e futuro na roça
Além do trabalho diário, pai e filha tocam projetos estruturais para melhorar a renda da fazenda.
Ao redor da represa principal, Hervécio constrói quiosques com cobertura de folhas de coqueiro, um bar com varanda, banheiros e área de cozinha.
A meta é transformar o local em um espaço de pesca esportiva e pesca e pague, com serviço de peixe frito, porções e até bebidas para visitantes.
Os investimentos são considerados altos para a realidade da família, mas o produtor rural repete que o futuro precisa ser construído no presente:
“Já trabalhei muito, agora é hora de fazer o futuro meu presente. O futuro para mim é agora”.
Ele também planeja plantar café em área irrigada, seguindo orientação de uma agrônoma que presta assistência técnica.
A ideia é começar com poucos hectares, bem cuidados, para garantir produtividade e retorno econômico em poucos anos.
A infraestrutura hídrica também foi modernizada. Uma nascente foi transformada em cisterna de grande capacidade, com estimados 50 mil litros, coberta e protegida.
Placas solares alimentam uma bomba que envia água para caixas d’água, bebedouros do gado e tanques de peixe, além de fornecer água limpa para consumo na casa.
A energia do sol, segundo Hervécio, virou aliada estratégica para reduzir custos e manter o sistema funcionando o dia inteiro.
Em meio a todo esse esforço, a fé orienta as decisões. Antes de entrar no canavial para cortar alimento para o gado, o produtor costuma fazer uma oração, pedindo proteção contra cobras e qualquer perigo escondido na vegetação.
Para ele, “sem Deus na vida a gente não é nada”, e a segurança de pai e filha em cada tarefa da roça passa por esse ritual diário de confiança.
No balanço que fazem da própria vida, ambos repetem que possuem pouco em termos materiais, mas muito em qualidade de vida.
“Tem gente que tem tanta coisa e não tem nada, não tem felicidade. A gente tem tão pouco e é tão feliz”, resume Andressa, enquanto observa a represa cheia de peixes, as vacas ruminando no pasto e a casa antiga que pretendem preservar para as próximas gerações.
E você, se tivesse a chance, trocaria a correria da cidade por uma rotina como a desse pai e dessa filha no interior, cercado de mata, animais e silêncio de fazenda todos os dias?

