Vivendo há anos em uma casa de lata sem água encanada nem energia elétrica, puxando carroça às 5h30 para alimentar porcos, galinhas, perus e dezenas de cães, dona Cida conseguiu comprar um terreninho com vaquinha online e se prepara para erguer a primeira casa própria simples na zona rural mineira
Morando há quase sete anos em uma casa de lata sem água nem energia, na zona rural de Monte Santo de Minas (MG), dona Cida acorda todos os dias às 5h30 da manhã para puxar uma carroça até a cidade, buscar lavagem e água e garantir a alimentação de porcos, galinhas, perus e dos muitos cães que resgata e cuida. Sem torneira, chuveiro ou tomadas, a sobrevivência depende de cada balde carregado, de cada panela preparada no fogão a lenha e de um controle rígido de tudo o que entra no pequeno terreno alugado onde ela vive com a filha.
A rotina dura e silenciosa ganhou o Brasil quando vídeos publicados por criadores de conteúdo e pelo canal Razões para Acreditar mostraram, em detalhes, a vida na casa de lata e o trabalho diário com os animais. A repercussão emocionou internautas de diferentes regiões e resultou em uma vaquinha que permitiu a compra de um pequeno terreno, nas proximidades, onde dona Cida pretende finalmente erguer sua casa própria e levar junto os bichos que hoje preenchem o quintal de lata.
Quem é dona Cida e como é viver em uma casa de lata

Dona Cida, que se aproxima dos 62 anos, sempre viveu na roça. Hoje, divide o espaço da casa de lata com a filha e com parte da família ampliada de bichos que acolheu ao longo dos anos.
O imóvel é simples, improvisado com chapas metálicas cuidadosamente encaixadas, sem reboco, sem forro e sem ligação formal à rede de água ou energia.
No interior, o quarto é organizado com cama, roupas do filho que trabalha fora e poucos móveis, todos mantidos limpos.
Ela faz questão de mostrar que, apesar da precariedade da casa de lata, nada ali é abandonado: tudo é dobrado, pendurado, guardado e limpo à sua maneira.
Ao lado, o espaço de oração, onde, segundo relata, reza todos os dias às 6 horas da manhã e às 6 da tarde, em jejum, pelos seguidores, pelos doadores e por quem envia mensagens.
A estrutura metálica, montada com latas reaproveitadas, também funciona como proteção contra a chuva e o vento, mas exige cuidados constantes.
Quando chove forte, a preocupação é com infiltrações e com a estabilidade do terreno.
A cisterna improvisada próxima da casa mostra que, embora exista um reservatório antigo, a segurança hídrica ainda depende diretamente do esforço físico de buscar água na cidade.
Rotina de trabalho, animais e sobrevivência na roça

O dia de dona Cida começa antes do amanhecer. Por volta das 5h30, ela deixa a casa de lata com o carrinho que usa para puxar lavagem e, em alguns dias, água.
A distância até a cidade gira em torno de 3 quilômetros pelo asfalto, trajeto que ela repete ao menos uma vez por semana para garantir volume suficiente para tratar os porcos e cozinhar para a casa.
Na volta, já com a carroça carregada, começa a segunda etapa do trabalho.
Dona Cida separa pães, restos de alimentos, verduras e ração, dilui a lavagem em água para não prejudicar as porcas prenhes e prepara, em baldes pesados, a comida que será distribuída em cochos e latas.
Ela explica que, sem água na mistura, o excesso de sal pode fazer as matrizes perderem os leitões, um conhecimento prático que revela anos de experiência com o manejo dos animais.
O plantel inclui porcas, leitões, um cachaço robusto, galinhas poedeiras, pintinhos recém-saídos do ninho, perus e gatos.
Em outro momento, dona Cida conta que já chegou a cuidar de 45 cachorros; muitos foram doados depois que apareceram em vídeos e despertaram interesse de adotantes.
Ainda assim, alguns cães seguem sob seus cuidados, incluindo um animal atropelado na estrada, que teve as patas platinas com ferro e hoje se recupera no quintal.
No terreiro, cada espécie tem seu espaço e sua lógica. Há o mangueiro dos porcos, cercado, com divisórias improvisadas; o local das galinhas, onde uma delas choca 15 pintinhos; a área dos perus, que ela alimenta com grãos e folhas; e o fogão a lenha, ponto central para cozinhar comida para as pessoas e para os bichos.
Dona Cida insiste que não admite maus-tratos: prefere ter menos animais bem cuidados a manter muitos em situação de sofrimento.
Da casa de lata à vaquinha: como nasceu o sonho do terreno próprio
A história de dona Cida começou a circular de forma mais ampla quando o ator Rodrigo Andrade gravou um vídeo na casa de lata, seguido por reportagens de criadores de conteúdo como Ângelo Português e Eduardo Pádua.
As imagens da rotina com animais, da casa de lata sem energia e sem água e das idas diárias à cidade chamaram a atenção do público e de plataformas de financiamento coletivo.
A partir daí, o canal Razões para Acreditar organizou uma vaquinha voltada para a compra de um pequeno terreno para dona Cida.
A campanha alcançou o objetivo e viabilizou a aquisição de um pedaço de chão, em área próxima, onde ela poderá construir uma casa de alvenaria e transferir sua rotina para um espaço próprio.
No novo local, no entanto, há regras de condomínio que restringem a presença de gado, o que exigirá adaptações no tipo de criação que ela pretende manter.
Mesmo assim, a compra do terreno representa uma virada importante. Se hoje a casa de lata fica em área arrendada, sujeita a incertezas sobre o futuro, o terreninho dá a perspectiva de estabilidade e de patrimônio.
Dona Cida afirma que pretende cuidar do novo espaço com o mesmo zelo com que organiza o quintal atual, levando porcos, galinhas, perus, cachorros e gatos, na medida do possível, para a nova fase.
O próximo passo: deixar a casa de lata para trás
Com o terreno garantido, a preocupação agora é erguer a casa.
Dona Cida fala em uma construção simples, mas sólida, onde possa ter energia elétrica regular, água disponível com mais facilidade e espaço para continuar tratando dos animais.
Ela se emociona ao lembrar que, até pouco tempo atrás, nem imaginava possuir um pedaço de terra próprio.
Enquanto a mudança não acontece, a casa de lata segue como centro da rotina e vitrine involuntária de uma realidade rural que raramente chega às grandes cidades.
O contraste entre a precariedade da estrutura e a organização interna, entre a ausência de conforto básico e o zelo diário pelos bichos, ajuda a explicar por que a história de dona Cida mobilizou tanta gente.
Ela própria diz que não esquecerá quem ajudou na vaquinha, ainda que não consiga agradecer um a um. Todos os dias, inclui doadores e espectadores nas orações feitas em voz baixa, antes do café.
O desejo, repetido diante das câmeras, é claro: construir a casa nova, receber as pessoas para um café simples e mostrar o antes e depois da casa de lata que, por anos, abrigou sua família e seus animais.
Com tanta gente se envolvendo à distância para transformar a vida de quem ainda vive em uma casa de lata, você acha que histórias como a de dona Cida deveriam inspirar mais políticas públicas para quem vive sem água e energia no campo, ou a mobilização da sociedade já faz diferença suficiente por si só?


[…] Na loja aberta há mais de meio século, onde afirma trabalhar há 69 anos seguidos, Nakamura organiza o dia entre o calor do fogo, o barulho dos martelos mecânicos e o cheiro de óleo de têmpera. À noite, depois de longas jornadas, ele recorre a pequenos copos de shochu diluído para suportar o cansaço acumulado nas pernas, que recentemente o obrigaram a tratamentos em fontes termais, mas não o tiraram da bancada da oficina de facas. […]