Tecnologia social com dessalinizador solar de baixo custo usa a energia do sol para tratar água salobra, garantir autonomia hídrica a agricultores e evitar o êxodo rural.
A história por trás do dessalinizador solar desenvolvido na Paraíba começa com um problema simples e brutal: a falta de água. Em muitas comunidades rurais, como o sítio Alto dos Cardeiros, em Queimadas, a rotina era acordar de madrugada, enfrentar fila com carroça de burro ou de boi e ainda correr o risco de voltar para casa sem uma única lata cheia. Hoje, graças à combinação de ciência, participação comunitária e sol em abundância, essa realidade vem mudando com a implantação do dessalinizador solar em propriedades rurais.
Mais do que uma solução técnica, o dessalinizador solar se consolidou como uma verdadeira tecnologia social. Ele transforma água salobra de poços profundos em água potável para beber e cozinhar, com baixo custo, sem depender de empresas privadas ou patentes e com potencial de ser construído pelos próprios agricultores. O resultado é concreto: mais autonomia hídrica, menos vulnerabilidade às secas e mais chances de as famílias permanecerem no campo, com dignidade.
A vida antes do dessalinizador solar
O depoimento de seu Severino resume a realidade de muitos agricultores paraibanos. Durante anos, a água não existia “por perto”, como ele mesmo descreve. Era preciso sair de casa cedo, enfrentar filas longas e ainda lidar com a frustração de ver a água acabar pouco antes de chegar a sua vez.
A rotina era assim
Ele saía por volta das 7 horas da manhã, esperava até 10 horas em filas formadas por carroças, muitas vezes voltava com o veículo praticamente vazio. A cena de “faltando cinco barças, 10 barças, a água já não dava mais” se repetia, deixando famílias inteiras sem abastecimento.
Esse padrão não é exceção, é regra em muitas áreas do semiárido. Sem água perto de casa, tudo fica mais difícil
Produção agrícola, criação de animais, higiene, alimentação, permanência das novas gerações na zona rural. A falta de água empurra jovens e adultos para a cidade, alimentando o êxodo rural.
Quando a ciência encontra o quintal do agricultor
A virada começou quando a Universidade Estadual da Paraíba passou a atuar diretamente no território, levando pesquisa aplicada ao cotidiano das famílias. No sítio Alto dos Cardeiros, a propriedade onde seu Severino mora desde os 12 anos, a infraestrutura hídrica hoje é outra
Há uma cisterna para armazenamento de água de chuva, um poço de cerca de 40 metros de profundidade, com vazão que chega a aproximadamente 1000 litros por hora no inverno, e o grande diferencial da área
cinco unidades de dessalinizador solar dedicadas a transformar a água salobra desse poço em água adequada para consumo humano.
A filha do processo é simples e poderosa. Dona Luzia, esposa de seu Severino, passou a chamar o resultado de “água mineral”. A água dessalinizada é usada para beber, cozinhar e ainda abastece vizinhos que não têm a mesma estrutura, reforçando o senso de comunidade.
Quem ajudou a trazer essa tecnologia para dentro da propriedade foi o próprio filho do casal, Vanderlei Viana, pesquisador e mestre em Ciência e Tecnologia Ambiental pela UEPB. Atuando como ponte entre a universidade e a comunidade, ele participou da implantação da tecnologia social que usa o dessalinizador solar para transformar água salobra em potável com ajuda do sol.
Dessalinizador solar como tecnologia social
A base da tecnologia foi desenvolvida ao longo de anos pelo professor Francisco Loureiro, também da Universidade Estadual da Paraíba. Desde 2010, ele vem aperfeiçoando o dessalinizador solar, instalando as primeiras unidades poucos anos depois e chegando hoje à terceira versão do sistema.
Esse dessalinizador solar se encaixa perfeitamente no conceito de tecnologia social
Ele é pensado para ser construído com materiais acessíveis, a partir de conhecimento aberto, sem patente e com foco em autonomia local. Uma vez que pedreiros, agricultores e comunidades aprendem o método, não é preciso depender de grandes empresas ou soluções importadas.
O processo de implantação também segue uma lógica participativa. Em muitos projetos, os pesquisadores utilizaram o método de Investigação Ação Participativa (IAP), trazendo alunos, técnicos e moradores locais para construir as unidades em conjunto. Em outras etapas, parcerias como a dos Engenheiros Sem Fronteiras viabilizaram recursos via campanhas de financiamento coletivo para erguer novas estruturas.
Na prática, isso significa que o dessalinizador solar não é apenas “instalado”, ele é apropriado pela comunidade. As pessoas entendem como funciona, como limpar, como manter e, muitas vezes, como replicar em outras propriedades.
Como funciona o dessalinizador solar na prática
O princípio do dessalinizador solar é o mesmo que a natureza usa para formar nuvens e chuva
evaporação, condensação e precipitação, só que reproduzido em pequena escala, dentro de uma estrutura simples.
A unidade típica tem
- Uma base de cimento com estrutura de ferro
- Um teto de vidro que permite a entrada da radiação solar
- Uma lona na base, onde é colocada a água salobra que será tratada
- Calhas e canaletas que coletam a água condensada e a direcionam para um reservatório
O ciclo funciona assim
A água salobra é colocada na “casinha” do dessalinizador solar. O sol aquece a superfície, fazendo a água evaporar. O sal não evapora, fica retido na lona. O vapor sobe, encontra o vidro mais frio, condensa em forma de pequenas gotas, escorre pelas calhas e cai em um reservatório próprio, já com baixíssima salinidade.
Com melhorias no desenho das calhas entre a primeira e a terceira versão, houve aumento significativo de eficiência em alguns locais. Em determinadas áreas, sistemas com 10 unidades passaram de cerca de 50 litros por dia para aproximadamente 120 litros após ajustes estruturais.
Na propriedade da família de seu Severino, a produção média de cada dessalinizador solar fica em torno de 13 litros de água por dia. Em outros experimentos na Paraíba, já foram alcançados cerca de 18 litros por unidade em 24 horas. Em um conjunto específico, a capacidade instalada chega a 65 litros por dia, o que permite, por exemplo, que três famílias retirem ao menos um galão de 20 litros por dia para beber e cozinhar.
Depois do processo, como a água sai com salinidade muito próxima de zero, os pesquisadores recomendam uma reconstituição salina mínima, que pode ser feita misturando uma pequena parte de água do próprio poço ou armazenando a água em recipientes de barro, que ajudam a mineralizar o líquido na medida adequada.
Por que o dessalinizador solar faz tanta diferença no semiárido
A tecnologia foi pensada para uma realidade específica
a de regiões com muita água salobra no subsolo e pouca água doce disponível na superfície. Em grande parte da Paraíba, assentada sobre embasamento cristalino, a perfuração de poços revela água com níveis de salinidade incompatíveis com o consumo humano direto.
Poços com salinidade muito elevada são comuns, e sem tratamento, essa água não pode ser usada para beber. Ao mesmo tempo, o sol é abundante quase o ano inteiro. O dessalinizador solar aproveita exatamente essa combinação
água salobra em abundância, sol constante e necessidade extrema de água potável para consumo humano.
Os impactos são diretos
- Reduz o tempo gasto em deslocamentos para buscar água em outras áreas
- Diminui a dependência de carros-pipa ou fontes distantes
- Aumenta a segurança hídrica das famílias no dia a dia
- Dá mais previsibilidade para o planejamento da produção agrícola e da vida no campo
Como resumiu um dos pesquisadores, sem água, o agricultor vai embora. Com o dessalinizador solar, ele passa a ter mais condições de ficar.
Escala, formação e difusão da tecnologia social
O projeto já implantou mais de 200 unidades de dessalinizador solar em diversos municípios da Paraíba e também em áreas de Pernambuco e do Ceará, por meio de iniciativas de fomento à pesquisa científica e extensão universitária.
Além da instalação, a equipe da UEPB trabalha fortemente na formação de pessoas
- Agricultores aprendem a usar, limpar e manter os equipamentos
- Pedreiros e técnicos locais são capacitados para construir novas unidades
- Cursos e oficinas ajudam a difundir o conhecimento para além dos projetos iniciais
Como não há patente sobre o dessalinizador solar, a tecnologia pode se espalhar sem barreiras jurídicas ou comerciais. Ela pode ser replicada como uma cisterna de placas, em que o aprendizado local faz o sistema se multiplicar por conta própria, à medida que mais comunidades conhecem o modelo.
O próximo passo da pesquisa é desenvolver um modelo móvel de dessalinizador solar, adaptado a regiões com solos que se movimentam ou cedem com o tempo, como áreas de massapê, onde a estrutura fixa sofre com deformações do terreno. A ideia é manter os princípios da tecnologia e ampliar sua aplicação a diferentes condições geológicas.
Sol, dignidade e permanência no campo
Talvez o aspecto mais simbólico dessa tecnologia social seja a inversão de significado do sol. Se por muito tempo o sol foi visto como símbolo da seca e da dificuldade no Nordeste, o dessalinizador solar transforma essa mesma energia em aliada na garantia de água de qualidade.
Em vez de esperar soluções externas ou obras monumentais que demoram décadas, comunidades passam a contar com uma ferramenta concreta, de baixo custo, construída localmente e baseada em ciência aplicada. É o tipo de solução que muda a rotina, reduz a vulnerabilidade e aumenta a dignidade no campo.
No fim, o que o depoimento de seu Severino e de dona Luzia mostra é algo simples
onde antes havia fila, incerteza e frustração, hoje há água potável dentro do próprio sítio, produzida diariamente com a ajuda do dessalinizador solar. E isso, em regiões marcadas pela seca, é praticamente sinônimo de esperança.
E você, olhando para a realidade do semiárido brasileiro, acha que o dessalinizador solar deveria ser levado para muito mais comunidades rurais do país?


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