Do sertão da Guerra de Canudos ao Morro da Favela, o processo que fez o Rio de Janeiro virou a capital das favelas mistura êxodo rural contínuo, falta de moradia popular e desigualdade entre morro e asfalto, ainda em expansão na metrópole carioca atual que expõe contrastes sociais extremos permanentes
Em 1897, quando a Guerra de Canudos foi esmagada no sertão da Bahia, e em 1900, quando o censo registrou 811.000 habitantes no Rio contra 239.000 em São Paulo, começava a se desenhar o cenário que faria o Rio de Janeiro virar a capital das favelas, com soldados sem casa ocupando morros e camadas pobres empurradas para encostas. Em 2010, o município já somava 763 favelas e, anos depois, a marca de 813 comunidades na região metropolitana mostra que o fenômeno não é estático, mas resultado de decisões históricas acumuladas.
Ao longo do século XX, o encontro entre crescimento urbano acelerado, ausência de política habitacional, geografia restritiva e desigualdade extrema entre morro e asfalto consolidou um modelo específico de expansão: condomínios de alto padrão na planície e ocupação popular nas encostas. O contraste entre o metro quadrado de cerca de 28.000 reais no Leblon e algo perto de 4.000 reais na Rocinha resume a lógica de uma cidade em que proximidade física não significa proximidade social.
Do sertão de Canudos ao nascimento do Morro da Favela

A história que explica por que o Rio de Janeiro virou a capital das favelas começa longe da Baía de Guanabara. No final do século XIX, Canudos transformou-se em símbolo de resistência de camponeses pobres e ex-escravizados, reunindo cerca de 25.000 habitantes em uma comunidade autossuficiente, sem interferência direta do governo republicano recém-instalado.
Quando o Exército destruiu Canudos em 1897, enviando mais de 10.000 homens, canhões e fuzis modernos, o Estado brasileiro reafirmou seu poder sobre o sertão, mas criou um problema urbano na capital federal. De volta ao Rio, muitos soldados não receberam as casas e indenizações prometidas. Sem renda estável e sem política habitacional, ocuparam um morro vazio próximo ao centro e ergueram barracos improvisados. Nascia o Morro da Favela, batizado com o nome da planta típica dos campos de batalha na Bahia.
A partir daquele núcleo inicial, consolidou-se uma ideia duradoura: para as camadas mais pobres, o direito à cidade viria pela ocupação precária de encostas. Na prática, o Rio de Janeiro virou a capital das favelas porque a solução improvisada dos soldados passou a ser replicada por trabalhadores urbanos, migrantes e removidos, sem que o poder público estruturasse alternativas formais de moradia.
Capital politicamente central, socialmente desigual e sem habitação popular
No começo do século XX, o Rio era capital federal, centro político e vitrine do país. Em 1900, concentrava mais de 800 mil habitantes, muito à frente de São Paulo, que ainda tinha cerca de 239 mil moradores. O status de capital atraiu funcionários, comerciantes, trabalhadores e migrantes, mas o crescimento não veio acompanhado de um plano robusto de habitação popular.
Enquanto a elite ocupava o centro reformado e a nascente zona sul, a população de baixa renda era empurrada para cortiços, áreas insalubres e, cada vez mais, para os morros. Quando a modernização urbana passou a derrubar cortiços e habitações coletivas para “embelezar” o centro, o efeito foi direto: famílias inteiras ficaram sem alternativa formal de moradia. Em vez de conjuntos habitacionais planejados, o caminho aberto era a subida dos morros.
Nesse contexto, o Rio de Janeiro virou a capital das favelas também porque escolheu remover, e não integrar, sua população mais pobre. A demolição de cortiços nas décadas de 1930 e seguintes levou ao surgimento de comunidades como Morro do Morro, Morro do Cantagalo e, mais tarde, Rocinha. Cada remoção produzia uma nova ocupação, aprofundando um ciclo de precariedade.
Limite geográfico e pressão da serra sobre a expansão urbana
Outro elemento estrutural é a geografia. Assim como Manaus, cercada pela floresta amazônica, e capitais como Belém, Macapá e Vitória, o Rio de Janeiro tem um limite físico claro para expansão horizontal, com a serra se erguendo logo após a faixa litorânea.
Apenas uma parte do território próximo à costa oferece área relativamente plana para ocupação intensiva. Logo depois da orla, o relevo sobe em encostas e maciços, dificultando a criação de grandes bairros populares em áreas planas e baratas. Na prática, quando o mercado formal e o poder público não oferecem alternativa, as encostas tornam-se o único espaço acessível a quem precisa morar perto dos empregos e serviços.
Essa combinação de barreira física e pressão demográfica fez com que morro e asfalto fossem se aproximando até quase se tocar, como no encontro entre Leblon, Vidigal e Rocinha. O Rio de Janeiro virou a capital das favelas também porque a geografia canalizou a demanda por moradia para áreas de risco e difícil urbanização, sem que a política habitacional disputasse esse espaço com soluções planejadas.
Êxodo rural, crise econômica e ocupação acelerada dos morros
A partir da década de 1940, a industrialização intensificou o êxodo rural. Milhares de famílias deixaram o campo em busca de emprego nas grandes cidades, confiando que encontrariam trabalho e serviços básicos nas capitais. No Rio de Janeiro, ainda centro político e econômico do país por boa parte do século XX, a pressão migratória foi especialmente forte.
Nordestinos, mineiros, moradores do interior fluminense e até de estados como Espírito Santo chegavam continuamente. No entanto, o crescimento urbano foi desordenado: faltavam saneamento, transporte e, sobretudo, habitação acessível. Sem política de moradia de massa, a oferta formal não acompanhou a demanda, empurrando novas levas de migrantes para encostas e áreas periféricas.
Nas décadas de 1960 e 1970, crises econômicas sucessivas e desemprego crescente agravaram o quadro. As favelas se expandiram para regiões mais distantes, como Jacarezinho, Maré, Cidade de Deus e Vila Kennedy, enquanto projetos de remoção e urbanização oficial tinham efeito paradoxal. Cada comunidade demolida era substituída por outra mais afastada ou mais adensada, porque o problema central continuava sendo a falta de moradia digna a preço compatível com a renda da população.
Favelas como parte estrutural da cidade e não mais exceção
No começo, a favela era vista como uma solução provisória, algo que seria substituído quando o Estado “organizasse” a cidade. Com o passar das décadas, as favelas deixaram de ser exceções e se tornaram parte estrutural do tecido urbano carioca. Hoje, cerca de 7% da área urbanizada do Rio é ocupada por favelas, que concentram quase um quarto da população residente.
Existem locais que ultrapassam 60.000 habitantes por quilômetro quadrado, como Rocinha, Vidigal, Maré e Complexo do Alemão. Em termos simbólicos e estatísticos, o Rio de Janeiro virou a capital das favelas porque uma em cada quatro pessoas da capital vive em assentamentos precários, onde infraestrutura, serviços e direitos chegam de forma desigual em relação aos bairros formais.
O contraste entre o bairro mais caro do país, como o Leblon, e comunidades vizinhas com renda muito inferior transforma a cidade em um mosaico de extremos. A convivência cotidiana entre luxo e carência, muro e viela, condomínio e barraco define a identidade urbana do Rio, que continua registrando crescimento no número de favelas. Os dados mostram que a expansão não é apenas fruto da pobreza, mas do modo como a cidade foi historicamente planejada – ou deixada sem planejamento – para os mais pobres.
Diante dessa trajetória histórica, na sua opinião, o que pesa mais para o fato de o Rio de Janeiro ter virado a capital das favelas: as decisões políticas, a geografia limitada ou a ausência de política de moradia popular em larga escala?


[…] Ao combinar tradição histórica, vocação turística consolidada e serviços urbanos relativamente estruturados, Petrópolis vem se firmando, ao longo dos últimos anos, como uma alternativa real para quem deseja morar na serra e manter acesso a saúde, comércio, cultura e mobilidade sem romper totalmente os laços com a capital do estado. […]
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