Com a Egito aposta em megaobra que liga o Mediterrâneo à depressão de Qattara, o país quer gerar energia hidrelétrica reversível, viabilizar extração de lítio da salmoura e redesenhar o mapa do Saara.
O que hoje parece apenas um vazio no mapa pode virar um dos projetos mais ousados do século. Quando o Egito aposta em megaobra desse tamanho, não está falando só em concreto e túneis, mas em reformular a geografia, a matriz energética e a própria chance de sobrevivência no deserto. A depressão de Qattara é uma cicatriz gigantesca, com ponto mais profundo a cerca de 133 metros abaixo do nível do mar, a poucos quilômetros do Mediterrâneo, onde bilhões de toneladas de água já “empurram” naturalmente contra a costa.
A ideia é simples no papel e brutal na prática: se o Egito aposta em megaobra capaz de abrir um caminho entre o mar e essa depressão, a gravidade faz o resto. O Mediterrâneo invade Qattara, o sol do Saara evapora a água sem parar, o fluxo nunca se estabiliza e turbinas podem girar por décadas sem uma barragem tradicional. No meio desse processo, surge algo ainda maior: um lago hipersalino que concentra minerais como lítio, magnésio e potássio, enquanto bilhões de metros cúbicos de vapor começam a alterar o clima do entorno.
A cicatriz de Qattara e o plano de transformar um abismo em mar
Antes de virar sonho de engenheiro, Qattara já era um pesadelo geológico. Não é apenas um vale, mas uma depressão colossal com cerca de 18 a 19 mil quilômetros quadrados de área, algo comparável a um país inteiro. Em seu ponto mais profundo, o terreno está a 133 metros abaixo do nível do mar. Menos de 80 quilômetros separam esse “abismo seco” do Mediterrâneo, onde a água está literalmente mais alta do que o chão do deserto.
Pelas leis da física, a água sempre corre para o ponto mais baixo. O que impede hoje o oceano de invadir Qattara é apenas um planalto rochoso que funciona como uma muralha natural. Quando o Egito aposta em megaobra para romper parte desse planalto, a ideia é liberar essa diferença de nível de forma controlada e transformar um buraco esquecido em um novo mar no coração do Saara.
Um sonho de mais de um século: da ideia de 1912 ao projeto do século
A primeira vez que alguém olhou para Qattara e enxergou uma usina, não foi no século 21. Em 1912, o geólogo alemão Albrecht Penk já ficou impressionado com a diferença absurda de altitude entre o Mediterrâneo e a depressão. Mais tarde, em 1927, o Dr. John Ball desenhou o mapa detalhado da região e percebeu que aquilo não era só um buraco, mas uma oportunidade física quase única.
O raciocínio era direto: se você consegue levar água do mar até uma área abaixo do nível do oceano, e esse lugar fica em um dos desertos mais quentes da Terra, a própria natureza cria uma máquina de energia. O sol evapora a água mais rápido do que ela entra, o nível do lago nunca se iguala ao nível do mar e o fluxo continua. Sem grandes barragens, sem represar rios, apenas usando gravidade e calor.
Mas havia um obstáculo gigantesco entre o sonho e o projeto: o planalto de Eldifa, um bloco maciço de rochas duras, como calcário dolomítico e arenito, se estendendo por algo em torno de 80 quilômetros. Para que a ideia funcionasse, seria preciso cortar esse planalto de ponta a ponta, abrir um canal ou túnel profundo e estável, capaz de conduzir enormes volumes de água sem desmoronar.
Quando já se pensou em usar bombas nucleares para abrir o caminho
Nas décadas de 1960 e 1970, em plena era da euforia atômica, alguns técnicos chegaram a defender que, se o Egito aposta em megaobra extrema, a “ferramenta ideal” seriam explosões nucleares subterrâneas. Um plano propunha perfurar mais de 200 poços ao longo da rota e detonar bombas com potência dezenas de vezes superior à de Hiroshima, tudo para rasgar o planalto de uma vez só, usando a própria energia destrutiva como “escavadeira”.
A lógica era selvagem: em vez de gastar anos com máquinas e obras, uma sequência de explosões abriria um canal inteiro em poucos instantes. Mas o custo invisível seria devastador. Havia risco de poeira radioativa atingir países vizinhos, abalar regiões geologicamente instáveis e criar um dano irreversível, muito além do suposto benefício. Com o avanço dos tratados de proibição de testes nucleares, essa solução foi sendo enterrada, junto com a ideia de usar bombas atômicas como “ferramenta de engenharia civil”.
Esse capítulo mostra o tamanho do desafio: para que o Egito aposta em megaobra sem cair em soluções suicidas, era preciso esperar a tecnologia certa. E ela chegou com outro tipo de “bomba”, desta vez feita de aço, hidráulica e discos de corte.
TBMs: as feras de aço que substituem a bomba nuclear
A nova fase do plano Qattara não olha mais para o céu em busca de cogumelos de fumaça. Olha para o subsolo e aposta nas máquinas de escavação de túneis, as TBMs (Tunnel Boring Machines). Em vez de explosões, elas oferecem um corte contínuo, controlado e revestido em tempo real.
Uma TBM moderna pode ter até 400 metros de comprimento, pesando como uma frota de aviões jumbo. Na frente, uma cabeça de corte com algo como 15 metros de diâmetro gira esmagando a rocha com discos de liga superdura, enquanto cilindros hidráulicos empurram toda a estrutura adiante com uma força colossal.
À medida que a rocha do planalto de Eldifa é triturada, correias internas retiram o entulho e robôs instalam, logo atrás da frente de escavação, anéis de concreto pré-moldado que formam o túnulo final. Onde a cabeça passa, já fica um tubo pronto, revestido, alinhado por lasers com precisão de milímetros.
O Egito já usou TBMs para atravessar o fundo do Canal de Suez e construir túneis embaixo do Cairo. Mas Qattara é outra escala. Escavar dezenas de quilômetros por rocha dura, em ambiente quente, com trechos de areia instável e camadas de basalto, exige uma coreografia de engenharia no limite do que a tecnologia é capaz de fazer hoje.
Como um novo mar poderia gerar energia sem parar
Depois que o túnulo estiver pronto e a conexão entre o Mediterrâneo e Qattara for aberta, a gravidade assume o comando. A água do mar começa a descer pelo canal, despenca do planalto para a depressão e forma uma espécie de cachoeira permanente, convertendo diferença de nível em energia mecânica para turbinas.
Em um projeto convencional, isso duraria pouco. Com o tempo, o lago encheria, o nível igualaria ao do mar, o fluxo diminuiria e as turbinas parariam. Em Qattara, a lógica é outra. O sol do Saara funciona como uma máquina de evaporação gigante.
Com temperaturas frequentemente entre 45 e 50 graus, a água que chega do Mediterrâneo evapora muito rápido. Modelos indicam que a evaporação pode retirar algo como dezenas de bilhões de metros cúbicos de água por ano, mantendo o nível do lago sempre mais baixo do que o nível do mar, algo em torno de dezenas de metros.
Na prática, isso cria um “motor natural”:
a água entra pelo túnulo, evapora no lago, o nível nunca estabiliza e o fluxo segue contínuo, alimentando turbinas por anos e anos.
É dessa combinação que nasce a visão central: quando o Egito aposta em megaobra, não quer apenas ligar mar e deserto. Quer transformar calor, gravidade e evaporação em uma usina hidrelétrica que não depende de rios nem de barragens gigantes.
Qattara como bateria energética: hidrelétrica reversível no meio do deserto
O projeto não para na geração “direta” de energia. Outro componente essencial é transformar Qattara na maior bateria de energia da África, usando tecnologia de hidrelétrica reversível, também chamada de pumped storage.
A ideia é aproveitar as falésias e encostas ao redor da depressão para criar reservatórios elevados. Durante o dia, quando fazendas solares e parques eólicos produzem mais eletricidade do que a rede consegue consumir, esse excedente não é desperdiçado. A energia extra serve para bombear água do lago de Qattara de volta para reservatórios no alto das paredes rochosas.
À noite, ou nos horários de maior consumo, basta abrir as comportas. A água volta a descer, passa por turbinas novamente e gera energia pela segunda vez. O mesmo volume de água ajuda a armazenar energia e estabilizar a rede elétrica, algo crítico em países que querem depender mais de fontes renováveis, mas sofrem com a intermitência do sol e do vento.
Estimativas mencionam que, somando geração direta e armazenamento reversível, a potência associada à megaobra pode chegar a algo na casa de milhares de megawatts, com capacidade comparável à de reatores nucleares, porém sem o risco radioativo.
Quando o “mar morto” vira mina de lítio, magnésio e potássio
Durante décadas, o principal argumento contra o projeto era ambiental: com tanta evaporação e entrada contínua de água do mar, o lago tenderia a virar uma “poça hipersalina”, semelhante a um mar morto. A água doce evapora, o sal fica e se acumula. A vida marinha tradicional não sobreviveria ali.
Só que, no século 21, a forma de enxergar esse “problema” mudou. Em plena corrida mundial por materiais da transição energética, a salmoura ultra concentrada deixa de ser lixo e passa a ser recurso.
À medida que o sal se concentra, o lago se torna um ambiente ideal para extrair minerais como lítio, magnésio e potássio, usando técnicas químicas e processos industriais já conhecidos em outras partes do mundo. Em vez de abrir minas profundas e explosivas, o Egito passa a ter um “tanque natural” onde o próprio sol faz o trabalho pesado de concentração.
O lítio, chamado de “novo petróleo” por estar no coração das baterias de carros elétricos e dispositivos eletrônicos, poderia transformar Qattara em um polo estratégico da cadeia de suprimentos global. A soma é poderosa:
Energia + armazenamento + lítio em larga escala = um dos conjuntos industriais mais valiosos do planeta, se a engenharia conseguir controlar os impactos.
Vapor que vira clima: microclima novo e possibilidade de cidades no Saara
A história não termina nem na água, nem no sal. Bilhões de metros cúbicos de vapor de água sobem todo ano da superfície de um lago desse tamanho. Esse vapor não desaparece. Ele entra na circulação de ventos, interage com massas de ar que vêm do Mediterrâneo e pode começar a alterar o microclima da região.
Modelos indicam que essa coluna constante de umidade tende a reduzir a secura extrema do Saara localmente, favorecendo a formação de nuvens e chuvas em áreas onde hoje quase nada chove. O entorno do lago pode ficar alguns graus mais ameno e mais úmido, abrindo espaço para vegetação, agricultura e até cidades planejadas.
Hoje, cerca de 95% da população egípcia se aperta no vale do Nilo, em uma faixa estreita e sobrecarregada. Um “novo mar no Saara”, com microclima próprio, poderia aliviar essa pressão demográfica, criando polos urbanos e turísticos no oeste do país, com resorts, zonas industriais ligadas a energia e minerais e áreas agrícolas irrigadas por técnicas modernas.
Em outras palavras, quando o Egito aposta em megaobra em Qattara, não está apenas pensando em turbinas. Está abrindo a possibilidade de ganhar espaço físico para que o país continue a crescer, em um mundo em que água, energia e território habitável se tornaram recursos estratégicos.
Genialidade ou risco extremo? O bisturi no corpo do continente
Nada disso vem de graça. Rasgar um planalto, ligar o Mediterrâneo a um abismo de milhares de quilômetros quadrados, modificar o clima local e criar um lago hipersalino no coração do Saara é, ao mesmo tempo, um ato de visão e uma intervenção brutal na natureza.
O custo financeiro é bilionário. O custo geológico ainda carrega incertezas. Um erro de cálculo na inclinação do túnulo, na pressão da água, na erosão das rochas ou na dinâmica de salinização pode gerar problemas difíceis de recuar depois que o mar começar a entrar.
Mas a história do Egito mostra um padrão: das pirâmides à represa de Assuã, o país sempre tratou a geografia como algo que pode ser redesenhado quando a sobrevivência está em jogo. A depressão de Qattara é apenas o capítulo mais recente dessa tentativa de negociar diretamente com a física, o clima e o deserto.
O fato é que o Egito aposta em megaobra porque está cercado pela pressão do século 21: precisa de energia, de espaço, de água, de minerais estratégicos e de uma saída para o aperto demográfico em volta do Nilo. A pergunta que fica não é se o projeto é ambicioso, mas se o balanço entre ganhos e riscos vai valer a pena no longo prazo.
E você, o que acha: esse plano de inundar Qattara e criar um novo mar é um passo genial de engenharia ou uma aposta perigosa demais contra a natureza?


[…] ergue muralha após o choque de […]
[…] lógica por trás da tecnologia é a mesma dos sistemas hidrelétricos reversíveis tradicionais: usar energia excedente para erguer algo pesado e, depois, usar a descida […]