Enquanto acelera a construção da megahidrelétrica de Medog, no Rio Yarlung Tsangpo, a China aposta R$ 933 bilhões para gerar 60 GW, atender 300 milhões de pessoas, reduzir carvão, estimular aço e desafiar Índia e Bangladesh em segurança hídrica, energética e influência regional futura e preparar economia chinesa para 2035.
A China confirmou a aposta bilionária na Estação Hidrelétrica de Medog, no alto curso do Rio Yarlung Tsangpo, no Tibete, consolidando o projeto como a maior hidrelétrica do mundo em construção. Com investimento estimado em cerca de 1 trilhão de yuan, algo entre 137 e 167 bilhões de dólares, equivalentes a aproximadamente 933 bilhões de reais, o país transforma um cânion himalaio em peça central de sua estratégia energética.
Ao longo de um cronograma de 10 a 15 anos, a megahidrelétrica deve começar a gerar eletricidade por volta de 2030, com entrada em operação plena prevista para perto de 2035. O complexo terá capacidade instalada de cerca de 60 gigawatts, quase três vezes a da Barragem de Três Gargantas, e poderá produzir 300 bilhões de quilowatt-hora por ano, energia suficiente para abastecer aproximadamente 300 milhões de pessoas.
Megahidrelétrica no Tibete vira vitrine da transição energética da China
A hidrelétrica de Medog nasce como uma das vitrines mais ambiciosas da transição energética da China. Localizada em uma região de grande desnível natural no Grand Canyon do Rio Yarlung Tsangpo, a usina aproveita uma queda de cerca de 2 mil metros ao longo de aproximadamente 50 quilômetros, algo raro em projetos hidrelétricos de grande escala.
Em vez de um único reservatório tradicional, o projeto foi concebido como um sistema de múltiplas estações em cascata, conectado por longos túneis subterrâneos e canais de desvio, no modelo run of river avançado. Essa configuração busca maximizar o uso da força da água com menor necessidade de alagamento de grandes áreas, ao mesmo tempo em que amplia a segurança operacional em uma região com riscos tectônicos e sísmicos.
A tecnologia central envolve túneis de alta eficiência com taxa de conversão energética superior a 85 por cento, conectando turbinas a linhas de transmissão que farão a energia percorrer milhares de quilômetros até os grandes centros industriais da China. A prioridade é reforçar a matriz de energia limpa, reduzir gradualmente a dependência do carvão e sustentar grandes polos urbanos, industriais e tecnológicos em um país que ainda cresce em consumo energético.
Além de atender outras regiões chinesas, parte da energia deve ficar no próprio Tibete, abrindo espaço para data centers, indústrias de alto consumo elétrico e infraestrutura digital. Na prática, o vale do Yarlung Tsangpo tende a deixar de ser apenas um corredor natural e se tornar um corredor energético e tecnológico.
Obra bilionária injeta demanda em cimento, aço e mineração
Do ponto de vista industrial, a hidrelétrica no Tibete funciona como um gigantesco programa de estímulos para diversos setores.
Estimativas ligadas ao projeto apontam que a construção pode consumir entre 20 e 30 milhões de toneladas de cimento ao longo da obra, impulsionando fábricas já instaladas em regiões próximas e cadeias logísticas de transporte de insumos.
A demanda por aço, cobre e alumínio também deve subir de maneira relevante, em especial para estruturas de túneis, barragens auxiliares, turbinas, torres, cabos e equipamentos de alta tensão.
Para o aço, a projeção é de um consumo adicional entre 1,4 e 1,9 milhão de toneladas ao longo de aproximadamente dez anos apenas por causa da hidrelétrica, um volume pequeno diante da capacidade total da siderurgia chinesa, mas suficiente para movimentar expectativas em mercados futuros.
Analistas de instituições como Bradesco BBI e Genial Investimentos veem o projeto como um exemplo de como a China ainda recorre a grandes obras de infraestrutura para reaquecer a economia, sustentar o mercado de minério de ferro e manter o parque siderúrgico em operação.
Empresas brasileiras de mineração e siderurgia acompanham de perto, porque qualquer sinal de aceleração da construção pesada na China costuma se traduzir em impacto direto sobre preços internacionais e planos de produção.
Riscos ambientais no Himalaia acendem alerta em Índia e Bangladesh
Se do lado econômico o projeto é visto como locomotiva, do ponto de vista ambiental e geopolítico ele é observado com cautela.
O Rio Yarlung Tsangpo nasce no Tibete, atravessa a região e segue para Índia e Bangladesh, onde passa a ser conhecido como Rio Brahmaputra, um dos principais cursos d’água do subcontinente.
Organizações ambientais alertam para o fato de que qualquer alteração relevante no regime de vazão no alto curso pode afetar ecossistemas frágeis do Himalaia, áreas de biodiversidade única e comunidades que dependem da água para agricultura, pesca e abastecimento.
Em uma região com histórico de instabilidade tectônica, grandes obras subterrâneas e reservatórios também levantam dúvidas sobre riscos sísmicos e impactos em encostas e vales.
Índia e Bangladesh acompanham o avanço das obras analisando cenários de segurança hídrica e alimentar.
Mudanças no padrão de cheias e secas, mesmo que parcialmente controladas por operação de barragens, podem interferir em safras agrícolas, navegação fluvial e planejamento urbano em regiões densamente povoadas.
Não à toa, a hidrelétrica de Medog se transformou em tema frequente nas discussões diplomáticas e técnicas entre esses países e a China.
Commodities globais e indústria asiática acompanham cada passo do projeto
No mercado global de commodities, a megahidrelétrica no Tibete virou uma espécie de termômetro para o apetite chinês por materiais industriais.
A combinação de obras civis gigantescas com uma rede extensa de transmissão de energia exige grandes volumes de cobre e alumínio em cabos, transformadores e estruturas metálicas.
Instituições como JPMorgan observam que, apesar da magnitude da obra, a indústria asiática mantém capacidade de expansão para atender esse tipo de demanda.
Ao mesmo tempo, o ambiente global de oferta mais apertada em alguns metais tende a favorecer fabricantes e processadores de países como Coreia do Sul, que podem ampliar participação em contratos ligados à infraestrutura elétrica chinesa.
Na prática, cada nova etapa confirmada ou licitação associada ao projeto é monitorada por mineradoras, siderúrgicas, produtores de metais não ferrosos e fundos de investimento, que ajustam projeções de preços e estratégias de compra.
A hidrelétrica no Tibete, assim, deixa de ser apenas uma obra nacional para se tornar um indicador do rumo da política industrial chinesa e da saúde do mercado de infraestrutura na Ásia.
Yarlung Tsangpo vira laboratório geopolítico da água e da energia
À medida que as obras avançam, o Rio Yarlung Tsangpo se consolida como laboratório geopolítico em que energia, água, clima e desenvolvimento econômico se cruzam.
Para a China, a promessa de gerar cerca de 300 bilhões de quilowatt-hora por ano coloca a usina no centro das metas de neutralidade de carbono em meados do século, ao lado de parques eólicos, solares e usinas nucleares.
Para Índia e Bangladesh, o foco recai sobre segurança hídrica e energética.
Governos e especialistas acompanham a operação planejada dos reservatórios e das estações em cascata para avaliar se a regulação de vazões pode reduzir riscos de enchentes extremas ou, ao contrário, aumentar a vulnerabilidade em períodos de seca.
A discussão inclui desde impactos em lavouras irrigadas até o papel do rio na geração de energia em seus próprios territórios.
A hidrelétrica de Medog também se conecta a um mosaico de projetos em estudo ou execução em países como Índia, Nepal e Butão, que procuram explorar o potencial hidrelétrico do Himalaia para fortalecer suas matrizes de energia renovável.
O resultado é uma região em que barragens, linhas de transmissão e acordos bilaterais de energia se tornam componentes permanentes da diplomacia e da estratégia de segurança nacional.
O que estará em jogo nos próximos anos
Nos próximos anos, governos, investidores e organizações ambientais devem concentrar a atenção em alguns pontos-chave ligados à megahidrelétrica no Tibete:
Primeiro, a coerência do projeto com a estratégia climática chinesa. A capacidade de realmente substituir parte significativa da geração a carvão dependerá de como a China integrará Medog com outras fontes renováveis e com a expansão da demanda interna.
Segundo, os efeitos concretos na segurança hídrica regional.
Índia e Bangladesh observarão se a operação da usina altera de forma sensível o regime de cheias e estiagens, com reflexos em agricultura, pesca e abastecimento urbano.
Terceiro, o potencial da obra como instrumento de estímulo econômico.
Se a hidrelétrica sinalizar uma nova rodada de grandes investimentos em infraestrutura, mineradoras, siderúrgicas e fabricantes de equipamentos podem ter um ciclo de demanda mais robusto, com repercussões para parceiros comerciais da China, inclusive no Brasil.
Por fim, será decisiva a capacidade de diálogo entre os países envolvidos para evitar que a disputa por água e energia se transforme em fonte permanente de tensão.

