Com taxa de partos gemelares entre 7 e 10 por cento desde os anos 1990, cidade gaúcha de 6 mil habitantes intriga pesquisadores, derruba a hipótese de experimentos de Mengele e substitui lendas da água milagrosa por evidência genética de efeito fundador em descendentes de imigrantes alemães isolados no município.
A cidade gaúcha de 6 mil habitantes que virou sinônimo de gêmeos é Cândido Godói, município rural emancipado em 1963, no noroeste do Rio Grande do Sul, a cerca de 490 quilômetros de Porto Alegre, com 6.151 moradores registrados em 2020. Desde os anos 1990, estudos demográficos e genéticos mostram que uma comunidade agrícola local, Linha São Pedro, apresenta entre 7 e 10 por cento de partos gemelares, contra cerca de 1 a 2 por cento nas médias estadual e nacional, patamar que colocou a cidade no radar científico internacional.
Ao longo das últimas décadas, essa cidade gaúcha de 6 mil habitantes foi alvo de hipóteses folclóricas e teorias conspiratórias, como a associação ao médico nazista Josef Mengele e à suposta “água milagrosa” da chamada Fonte da Fertilidade. Mas, à medida que os dados foram acumulados entre 1959 e 2008 e analisados em artigos publicados a partir de 1996 e 2011, a narrativa midiática perdeu força e deu lugar a uma explicação técnica: um forte efeito fundador genético em população pequena, endogâmica e descendente de imigrantes germânicos.
Onde fica a cidade gaúcha de 6 mil habitantes e por que ela é estatisticamente anômala
Cândido Godói é uma cidade gaúcha de 6 mil habitantes localizada na região Noroeste do Rio Grande do Sul, próxima da fronteira com a Argentina, com área de aproximadamente 246 quilômetros quadrados e perfil predominantemente rural. O município adotou oficialmente o apelido de Terra dos Gêmeos, reflexo direto da concentração de partos gemelares identificada em partes do território, especialmente em Linha São Pedro.
O ponto de partida da anomalia não é o tamanho do município, mas a proporção de gêmeos em relação ao total de nascimentos. Em diversos períodos, estudos demográficos registraram entre 7 e 10 por cento de partos gemelares em Linha São Pedro, enquanto o próprio município, fora dessa comunidade, se aproxima de 1,5 por cento. Em números absolutos, o levantamento de batismos entre 1959 e 2008 identificou 91 pares de gêmeos e um trio em cerca de 6.262 registros, concentração que foge do padrão esperado para uma população desse porte.
As taxas de gemelaridade que colocam Cândido Godói no topo do mundo
Para entender o peso estatístico da cidade gaúcha de 6 mil habitantes, é preciso comparar suas taxas com outros locais famosos pela alta gemelaridade. Regiões como Igbo Ora, na Nigéria, e a vila de Kodinhi, na Índia, apresentam cerca de 45 pares de gêmeos para cada 1.000 nascimentos, algo em torno de 4,5 por cento dos partos, contra 4 por 1.000 na média indiana.
No Brasil, um estudo nacional com 41 milhões de partos entre 2001 e 2014 encontrou taxa média de gêmeos de aproximadamente 9,41 por 1.000, isto é, perto de 0,94 por cento. Em contraste, Linha São Pedro reúne entre 70 e 100 partos gemelares para cada 1.000 nascimentos, de 7 a 10 por cento, dependendo do período analisado. O próprio município como um todo fica em cerca de 1,5 por cento, ainda acima da média nacional.
Na prática, isso significa que aquela cidade gaúcha de 6 mil habitantes exibe, em determinados recortes, algo entre quatro e seis vezes mais gêmeos do que seria esperado mesmo usando como referência uma taxa estadual já elevada. O tamanho reduzido da população amplifica variações percentuais, mas a anomalia se mantém estável em séries históricas distintas, o que reduz a chance de ser apenas um efeito de flutuação aleatória.
O que os estudos genéticos encontraram em Linha São Pedro
A partir da década de 1990, grupos ligados ao Hospital de Clínicas de Porto Alegre, à UFRGS e a centros de genética humana passaram a tratar Cândido Godói como um laboratório natural para estudar gemelaridade. O foco principal foi Linha São Pedro, a comunidade agrícola com maior concentração de partos gemelares.
Um estudo clássico de 1996 confirmou a incidência de 10 por cento de partos gemelares entre 1990 e 1994 em Linha São Pedro, contra 1,8 por cento no Rio Grande do Sul como um todo. Houve também identificação de alta recorrência de gêmeos nas mesmas famílias e de elevado grau de endogamia, isto é, casamentos entre pessoas aparentadas ou dentro de um conjunto restrito de sobrenomes. Esse padrão já sugeria um componente genético amplificado por isolamento populacional.
Nas análises de tipo de gemelaridade, cerca de 53 por cento das duplas avaliadas eram dizigóticas, os chamados gêmeos fraternos, não idênticos, que resultam de duas ovulações distintas. Estudos posteriores estimaram que, em Linha São Pedro, a taxa de gêmeos dizigóticos chega a 3,84 por cento e a de monozigóticos a 2,98 por cento, contra 0,48 e 0,64 por cento, respectivamente, no restante do município. Ou seja, ambos os tipos aumentam, mas o salto é mais forte nos gêmeos dizigóticos, justamente aqueles mais associados a predisposição hereditária à ovulação múltipla.
Efeito fundador, endogamia e a explicação mais aceita hoje
Para explicar por que uma cidade gaúcha de 6 mil habitantes exibe tantas gestações de gêmeos, geneticistas recorreram ao conceito de efeito fundador. Cândido Godói e Linha São Pedro foram colonizados no início do século 20 por poucas famílias de origem alemã, muitas ligadas à região de Hunsrück, que já registra taxas de gêmeos acima da média europeia.
Quando um grupo pequeno de colonizadores se estabelece de forma relativamente isolada, variantes genéticas raras podem se concentrar e se tornar comuns naquela população. Estudos de genealogia e de sobrenomes mostram que mães que tiveram gêmeos em Linha São Pedro têm coeficiente de endogamia significativamente maior do que as que nunca tiveram gêmeos, o que é exatamente o padrão previsto por modelos de efeito fundador.
Pesquisas posteriores sugeriram ainda a participação de variantes em genes associados a mecanismos de ovulação e fertilidade, como o TP53, em mulheres de Cândido Godói com gestações gemelares. A amostra é pequena e não há consenso definitivo, mas o conjunto de dados converge para uma mesma direção: o fenômeno dominante é genético, herdado e concentrado em uma comunidade específica, e não resultado de um agente ambiental único aplicável a toda a população mundial.
Por que idade materna e ambiente não explicam o fenômeno
Algumas hipóteses usuais para o aumento de gêmeos, como idade materna mais avançada e o uso de técnicas de reprodução assistida, não se encaixam no caso da cidade gaúcha de 6 mil habitantes. A idade média das mães em Linha São Pedro é semelhante à de outras localidades do próprio município, o que afasta a ideia de que uma maternidade mais tardia estaria puxando a taxa para cima.
Além disso, os registros de gemelaridade alta em Cândido Godói começam muito antes da expansão da fertilização in vitro no Brasil. As taxas anômalas aparecem desde a primeira metade do século 20, se mantêm nas décadas seguintes e seguem acima da média em períodos recentes, sempre sustentadas por dados de nascimentos e batismos. Estudos conduzidos nos anos 1990 e 2000 não identificaram fatores ambientais externos específicos, como exposição diferenciada a substâncias químicas, que pudessem explicar sozinhos a gemelaridade local.
A hipótese Mengele: o que a narrativa diz e o que os dados mostram
Uma das versões mais divulgadas fora da cidade gaúcha de 6 mil habitantes associa a alta gemelaridade a supostos experimentos do médico nazista Josef Mengele, que viveu na América do Sul após a Segunda Guerra. A tese ganhou força em 2008, quando um historiador argentino sugeriu que Mengele teria atuado como médico na região de Cândido Godói nos anos 1960, realizando intervenções com foco em gêmeos.
No entanto, quando pesquisadores analisaram 6.262 registros de batismo entre 1959 e 2008, procurando ver se havia um pico de gêmeos entre 1964 e 1968, período em que Mengele teoricamente teria estado na área, não encontraram qualquer aumento estatisticamente significativo. A frequência de nascimentos gemelares não se alterou de forma compatível com a ideia de um experimento localizado, com início e fim definidos.
Registros históricos apontam gêmeos em Cândido Godói desde o início do século 20, bem antes da fuga de Mengele para a América do Sul. A participação de Linha São Pedro na taxa de gêmeos do município permanece alta em dois períodos amplos, 1927 a 1958 e 1959 a 2008, o que indica continuidade do fenômeno antes, durante e depois da suposta passagem do médico pela região. Na prática, a hipótese Mengele foi testada com séries temporais e rejeitada pelos próprios dados que deveriam sustentá-la.
A lenda da água milagrosa e a “fonte da fertilidade”
Paralelamente às teorias conspiratórias, a cidade gaúcha de 6 mil habitantes construiu uma identidade turística em torno da gemelaridade. Em 2008, a comunidade de Linha São Pedro inaugurou o Monumento da Mãe Fertilidade, uma escultura com cerca de 2,5 metros em homenagem aos mais de 200 irmãos gêmeos que viviam no município na época. Ao lado do monumento, foi criada a chamada Fonte da Fertilidade, um poço onde visitantes bebem água na esperança de aumentar as chances de ter gêmeos.
No material de divulgação turística, a narrativa é clara: quem bebe daquela água, teoricamente, teria maior probabilidade de engravidar de gêmeos. Porém, os próprios textos oficiais admitem que se trata de uma mistura de folclore e curiosidade local, sem comprovação científica. Estudos que investigaram o fenômeno em Cândido Godói não encontraram qualquer evidência de que a água seja fator causal, e geneticistas apontam reiteradamente para a herança familiar e para o isolamento populacional como explicações centrais.
Na prática, a fonte funciona como símbolo identitário e elemento econômico para o turismo rural, mas não altera a conclusão dos pesquisadores: a água milagrosa é mito, útil à narrativa local, mas irrelevante na explicação técnica da gemelaridade.
A cidade como laboratório vivo de genética populacional
O conjunto de características de Cândido Godói transforma essa cidade gaúcha de 6 mil habitantes em um caso de interesse recorrente para a genética populacional. Há uma população pequena, genealogias bem documentadas, forte endogamia e um traço fenotípico raro e facilmente mensurável, a gemelaridade.
Em 2011, um artigo em periódico internacional consolidou o município como exemplo de debate entre explicações sensacionalistas e modelos científicos, contrapondo diretamente a hipótese de experimentos nazistas à hipótese de efeito fundador e isolamento genético. Em 2018, um mapeamento das taxas de gêmeos em 5.565 municípios brasileiros apontou a existência de outliers e agrupamentos de alta gemelaridade, e Cândido Godói encaixou precisamente na categoria de pequeno município com taxa muito acima do entorno.
Além da produção acadêmica, a cidade realiza encontros periódicos de gêmeos, que em 2010 reuniram mais de 200 irmãos, reforçando a visibilidade pública do fenômeno. Para os pesquisadores, a comunidade continua sendo valiosa para identificar variantes genéticas ligadas à gemelaridade e entender como pequenas populações amplificam traços raros ao longo das gerações.
O que realmente explica tantos gêmeos e o que ainda falta investigar
Do ponto de vista estritamente factual, os dados disponíveis permitem afirmar que a cidade gaúcha de 6 mil habitantes tem muitos gêmeos porque foi colonizada por um número pequeno de famílias com predisposição genética à gemelaridade, que se mantiveram relativamente isoladas por décadas. O efeito fundador, reforçado pela endogamia e pela concentração de sobrenomes, elevou tanto as taxas de gêmeos dizigóticos quanto monozigóticos em comparação ao restante do município, ao estado e ao país.
Explicações baseadas em supostos experimentos de Mengele ou em água milagrosa não resistem à análise de séries históricas de nascimento, de genealogias e de estudos genéticos. O que permanece em aberto não é se o fenômeno é real, mas quais variantes específicas e quais combinações de fatores internos à população explicam, em detalhe molecular, a capacidade aumentada de gerar gêmeos.
Na sua opinião, o caso dessa cidade gaúcha de 6 mil habitantes já está bem explicado pela genética ou ainda há espaço para outras hipóteses que mereçam investigação séria nos próximos anos?


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