Antes visto como paraíso dos brasileiros que buscavam estudar e trabalhar na Europa, a Irlanda agora acumula relatos de ataques a entregadores, gangues juvenis em Dublin, insegurança em Gort, aluguel sufocante e um clima anti-imigrante que cresce com medo silencioso nas ruas entre famílias brasileiras assustadas com ataques inesperados recentes
Até poucos anos atrás, a Irlanda era tratada como paraíso dos brasileiros que queriam fugir da violência no Brasil e aprender inglês em um país considerado acolhedor. Mas o ataque a um entregador em 2019 em Dublin, os episódios de agressão registrados em janeiro de 2021 e os casos de violência em 2023 mostraram que o cenário mudou para muitos imigrantes.
Entre bairros classificados como perigosos na capital, como Finglas e regiões marcadas por assaltos a ciclistas desde 2019, e a pequena Gort, no oeste, a sensação descrita em entrevistas é de insegurança crescente. O que um dia foi visto como paraíso dos brasileiros hoje é narrado por muitos como rotina de alerta permanente, ataques inesperados, aluguel caro e medo de um clima anti-imigrante em ascensão.
De paraíso dos brasileiros a rotina de medo nas ruas
Durante anos, a combinação de possibilidade de trabalhar enquanto estuda, vida relativamente mais barata que em outras cidades de língua inglesa e imagem de povo alegre e aberto fez da Irlanda um suposto paraíso dos brasileiros. A chance de recomeçar e mandar dinheiro para casa parecia compensar o frio, a chuva e a distância.
Nos últimos anos, porém, a narrativa se fragmentou. Entregadores de comida relatam agressões físicas, roubos de bicicleta e emboscadas em bairros específicos de Dublin. Moradores de áreas com grande presença de imigrantes apontam o avanço de gangues de adolescentes, enquanto especialistas em estudos sociais descrevem um sentimento anti-imigração alimentado pela crise de moradia e pelos altos preços de aluguel. O país que aparecia nos sonhos agora entra também nos relatos de medo.
Entregadores atacados em Dublin com barras de ferro e lixeiras
Giancarlo, entregador de comida em Dublin, pedala em média 80 quilômetros por turno, às vezes recebendo apenas 8 euros por viagens longas para zonas afastadas da capital. O serviço que sustenta a estadia virou também fonte de risco. Em 2019, por volta das sete da noite, num dia chuvoso perto de um canal, ele relata ter sido cercado por um grupo de homens que pediu dinheiro e o atacou com um vergalhão de aço.
Golpes nos braços, na cabeça e a queda no chão terminaram com desmaio e trauma. Ele lembra de pensar que não fazia sentido sair do Brasil para morrer daquele jeito na Irlanda. Desde então, evita alguns distritos à noite, como o D11, e reorganiza a rota para reduzir riscos, mesmo que isso signifique perder corridas.
O maratonista Alan tem trajetória semelhante. Trabalhando como entregador, diz ter sido atingido no rosto por um bastão de metal em junho de 2023 ao ser alvo de assaltantes interessados na bicicleta. Meses depois, em outubro, relata ter sido derrubado no bairro de Finglas, quando um jovem o empurrou e outro jogou uma grande lixeira contra sua perna, quebrou o osso e o colocou em recuperação por três meses, com remédios e vaquinha online para custear as despesas. Ele compara a região a uma periferia violenta do Brasil e decidiu deixar a Irlanda após sete anos.
Outro entregador, Edmar, conta que recebeu um pedido em Finglas e, ao se aproximar, viu de longe cerca de dez a doze pessoas com pedaços de ferro na mão em uma área escura. Conseguiu recuar antes de ser cercado, mas conclui que, a partir do momento em que anoitece, é preciso escolher com cuidado para onde os entregadores vão, sob pena de virar mais um caso de violência.
Gort, o interior que virou Little Brazil e também perdeu o sossego
Longe da capital, Gort, no condado de Galway, ganhou o apelido de “Little Brazil” depois que, no início dos anos 2000, um frigorífico atraiu dezenas de trabalhadores, muitos de Goiás. Em meados daquela década, quase metade da população da cidade chegou a ser de brasileiros; hoje, a estimativa é de 20 a 30 por cento.
A cidade pequena tem mercearia com produtos do Brasil, lanchonete colorida com comida caseira, cabeleireiro que atende em português e clima de interior em que vizinhos se cumprimentam na calçada. Por muito tempo, Gort foi citado como paraíso dos brasileiros que buscavam vida tranquila, longe da correria de Dublin.
Moradores mais antigos, porém, relatam que “o sossego de 25 anos atrás” não é o mesmo. Notícias de ataques a brasileiros em cidades próximas, como Limerick, a cerca de 60 quilômetros, e a circulação de relatos de violência contra imigrantes em outras regiões da Irlanda fazem com que o sentimento de segurança absoluta no interior também seja questionado.
Três ondas migratórias e o peso do aluguel em Dublin
Dados do Itamaraty indicam que os brasileiros são hoje a quinta maior comunidade de imigrantes na Irlanda, com cerca de 80 mil pessoas vivendo no país de forma regular, sendo que 78 por cento teriam chegado entre 2016 e 2023. A migração ocorreu em ondas: primeiro trabalhadores para frigoríficos no fim dos anos 1990 e início dos anos 2000, depois estudantes de inglês em meados da década e, mais recentemente, a partir de 2011, profissionais qualificados chamados para áreas críticas de trabalho.
A fama de paraíso dos brasileiros se apoiou também na percepção de que o custo de vida seria mais acessível do que em outros destinos de língua inglesa, como Londres. Hoje, índices de custo mostram que a Irlanda não é exatamente barata; Dublin ainda pode ser mais em conta do que algumas grandes capitais, mas os aluguéis dispararam e a crise de moradia virou combustível frequente para discursos que culpam a imigração pelo aperto.
Explosões de ódio, extrema direita e clima anti-imigrante crescendo
Em janeiro de 2021, um entregador brasileiro reagiu ao roubo da bicicleta de um amigo e esfaqueou um adolescente irlandês, que morreu. A Justiça considerou legítima defesa e o inocentou, mas o episódio abriu debate sobre ódio a imigrantes na Irlanda. Em novembro de 2023, um homem atacou crianças com faca na porta de uma escola em Dublin; quem conteve o agressor foi um brasileiro entregador de comida, Caio Benício, tratado como herói pela imprensa no primeiro momento.
A breve consagração, porém, deu lugar a protestos violentos anti-imigração na capital, após circular a informação de que o autor do ataque seria um imigrante. Pesquisadores apontam que grupos de extrema direita, em ascensão no país, têm explorado tensões ligadas à crise habitacional para responsabilizar estrangeiros pelos problemas. Esse clima alimenta o medo de quem um dia enxergou na Irlanda um paraíso dos brasileiros e hoje revê a avaliação.
Ao mesmo tempo, especialistas lembram que as agressões a entregadores não se restringem a um único grupo nacional. Gangues de adolescentes e jovens irlandeses têm atacado pessoas em geral, muitas vezes convocando entregadores para emboscadas com pedidos falsos em bairros como Finglas, o que reforça a necessidade de respostas de segurança pública mais estruturadas.
Segurança frágil, poucos policiais e cautela redobrada nas ruas
Números oficiais mostram que a Irlanda segue com um dos menores índices de homicídio da Europa, em torno de 0,88 por 100 mil habitantes, contra 1,56 na França. Essa estatística, porém, não impede a sensação de vulnerabilidade de quem enfrenta agressões físicas, ameaças e roubos no dia a dia, sobretudo em áreas urbanas da capital.
Moradores relatam a ausência de patrulhamento policial ostensivo em bairros de classe média mais afastados, onde se veem placas de sistemas de alerta de associações de moradores, mas poucos agentes nas ruas. Um professor ouvido na reportagem afirma que o país precisaria de mais policiais em ronda regular e com mais poder para intimidar comportamentos antissociais, especialmente no centro de Dublin. Brasileiros que vivem há mais de uma década no país dizem que hoje evitam voltar a pé de madrugada e preferem gastar com táxi para reduzir riscos.
Contribuição brasileira e o desafio de continuar chamando a Irlanda de paraíso
Apesar dos episódios de violência e da ascensão de discursos anti-imigração, pesquisadores destacam que os brasileiros se tornaram parte importante da sociedade irlandesa. Um quarto teria parceiros irlandeses, e bares, clubes, academias e negócios de alimentação administrados por brasileiros transformaram a paisagem de vários bairros.
Histórias como a de Caroline, que abriu empresa de doces e alugou cozinha compartilhada para produzir brigadeiros, e de Rosely, que produz alegorias e apresentações de carnaval em todo o país, mostram que o empreendedorismo brasileiro é visível na cena cultural e econômica local. Mesmo assim, essas mesmas personagens afirmam que hoje se cuidam mais, evitam andar sozinhas tarde da noite e sentem um ambiente mais tenso do que há 17 anos.
A soma de casos de agressão, crescimento de grupos radicais e crise de moradia não apaga totalmente a imagem positiva, mas corrói a ideia simples de Irlanda como paraíso dos brasileiros. Para muitos, o país segue sendo uma oportunidade de estudo, trabalho e vida nova; para outros, passou a ser um lugar em que vale pensar duas vezes antes de sair de bicicleta à noite para entregar comida.
Na sua opinião, a Irlanda ainda pode ser chamada de paraíso dos brasileiros ou os ataques a entregadores, o clima anti-imigrante e o custo de vida empurraram o país para a lista de destinos onde a promessa não combina mais com a realidade?

