Em meio à expansão acelerada da energia eólica, moradores do sertão nordestino relatam noites sem silêncio, poeira vermelha cobrindo casas, cisternas rompidas, medo permanente de rachaduras nas estruturas e sensação de que a proteção do clima virou licença para destruir a Caatinga e ameaçar reservas de água já extremamente escassas
Nos últimos anos, com a multiplicação de parques eólicos em áreas do semiárido, moradores do sertão nordestino passaram a conviver com hélices gigantes instaladas a poucos metros de suas casas, principalmente na região do Seridó, entre o Rio Grande do Norte e a Paraíba. A chegada dos aerogeradores transformou paisagens da Caatinga em corredores de torres de concreto, atraindo investimentos e empregos, mas também impondo ruídos, sombras móveis e impactos diários sobre comunidades que vivem há décadas ali.
Desde o início das obras de construção e instalação dos parques, os relatos se repetem em povoados, quilombos e pequenas comunidades rurais, sempre com o mesmo roteiro, estrondos de máquinas pesadas, rachaduras em cisternas, poeira que invade quartos, portas fechadas o dia inteiro e o medo constante de que a casa não resista às vibrações. No discurso oficial, tudo é feito em nome da defesa do clima. Na prática, parte dos moradores do sertão nordestino diz ver a Caatinga fragilizada e a rotina virando um pesadelo silencioso de madrugada.
Energia verde em cima da Caatinga e do cotidiano das casas
O Nordeste, com ventos constantes e alta incidência solar, tornou-se uma das regiões mais atrativas para empresas que investem em energia eólica. O semiárido oferece o cenário ideal para turbinas que exigem vento firme, e o Brasil já figura entre os maiores produtores mundiais desse tipo de energia. Na Caatinga, isso se traduz em serras tomadas por torres e estradas abertas para caminhões e equipamentos pesados.
Para a indústria, o mapa é de oportunidade. Para muitos moradores do sertão nordestino, o saldo é diferente. Sombra projetada pelas hélices, barulho contínuo e poeira levantada por obras e manutenção ocupam o centro das queixas, especialmente em áreas onde o parque eólico praticamente encosta nas casas. O que para o investidor é apenas infraestrutura em expansão, para a população local significa conviver com máquinas girando dia e noite sobre um bioma já frágil.
Casas a 100 metros das turbinas e cisternas rachadas
Ao contrário de países que definem distância mínima entre aerogeradores e moradias, o Brasil não tem uma regulamentação clara sobre quantos metros devem separar turbinas e residências. O resultado é a existência de famílias vivendo a cerca de 100 metros de torres de grande porte, como o caso de Maria do Socorro e seus parentes, que seguem escutando o barulho do equipamento como se estivesse sobre o telhado.
No Quilombo do Talhado, na Paraíba, moradores do sertão nordestino relatam que todas as cisternas se romperam durante a construção de um parque eólico vizinho, instalado em uma região onde água de chuva armazenada é literalmente questão de sobrevivência. A cada explosão ou vibração mais intensa durante as obras, crescia o medo de que a casa rachasse e desabasse. Uma moradora descreve que, se sofresse do coração, cairia para trás com o impacto dos estrondos.
Quando a água some e a conta recai sobre as famílias
Em uma das áreas mais secas da Caatinga, cisternas são instrumentos indispensáveis para guardar a pouca água disponível ao longo do ano. Quando essas estruturas se rompem, o efeito é imediato, semanas sem água potável e sem alternativa fácil de abastecimento. Maria de Fátima, moradora da região, decidiu pagar do próprio bolso o conserto da cisterna enquanto aguarda algum tipo de reparação prometida por uma empresa do setor elétrico de origem espanhola.
Ela relata ter passado semanas sem água, sem ter onde buscar o recurso básico. O impacto de uma fissura no reservatório não é apenas financeiro, é também emocional, porque reforça a sensação de abandono entre moradores do sertão nordestino, que veem obras milionárias avançando em ritmo acelerado enquanto soluções para problemas criados pela construção seguem em ritmo lento e burocrático.
Poeira vermelha, saúde frágil e sensação de prisão em casa
Na Serra de Santana, no Rio Grande do Norte, onde estão em construção cinco parques eólicos com dezenas de novos aerogeradores, o trânsito de veículos pesados levanta poeira vermelha que pinta casas e móveis. Moradores afirmam que não conseguem manter as residências limpas e que a poeira entra por frestas, telhados e janelas, mesmo com esforço diário de limpeza.
Uma moradora conta que já passou por duas cirurgias cardíacas e se prepara para uma terceira. Para ela, a combinação de poeira constante, ruído e preocupação com a saúde transformou a casa em lugar de vigilância permanente, não em refúgio. Outra vizinha relata que a solução encontrada foi praticamente fugir do convívio aberto, mantendo portas e janelas fechadas o tempo todo, isolando o interior com plásticos sobre as camas para impedir que a poeira se entranhe nos colchões. Dormir, diz ela, se tornou difícil em um ambiente que mais parece uma prisão improvisada.
Falta de regras claras deixa moradores do sertão nordestino expostos
Especialistas e moradores apontam que a ausência de regras objetivas sobre distâncias, limites de ruído e responsabilidades por danos estruturais coloca comunidades inteiras em situação de vulnerabilidade. Sem uma norma nacional que defina quanto um aerogerador pode se aproximar de casas e cisternas, cada empreendimento negocia suas condições, muitas vezes com moradores do sertão nordestino sem assessoria técnica ou jurídica adequada.
A associação do setor eólico costuma recusar a ideia de uma distância mínima obrigatória, mas ao mesmo tempo reconhece que existem problemas e fala em reparações como prioridade. Para quem vive nos povoados atingidos, a distância entre o discurso e a prática ainda é grande, especialmente quando a conta de consertar uma cisterna, refazer paredes rachadas ou limpar poeira permanente recai sobre famílias com renda reduzida e pouco acesso a serviços públicos.
Clima como justificativa e a Caatinga como área de sacrifício
Os parques eólicos se apresentam como parte da solução para a crise climática global. A narrativa de energia limpa e renovável, porém, convive com denúncias de que o bioma da Caatinga e as comunidades tradicionais viraram áreas de sacrifício, onde se aceita barulho, impacto visual e fissuras em estruturas em troca de metas de descarbonização.
Moradores questionam por que a defesa do clima precisa significar helicoidais gigantes girando sobre telhados, estradas abertas sobre lajedos, poeira cobrindo plantas e reservatórios de água se rompendo em regiões já marcadas pela seca. A crítica central é que a transição energética, tal como vem sendo implementada em partes do sertão, não distribui de forma equilibrada os benefícios e os custos. As comunidades ficam com o risco cotidiano, enquanto grandes grupos econômicos concentram ganhos.
Reparações lentas, portas fechadas e futuro incerto
Enquanto aguardam respostas de empresas e autoridades, moradores do sertão nordestino seguem fechando portas e janelas para tentar se proteger da poeira e do barulho, improvisando soluções para conviver com turbinas que giram dia e noite sobre suas casas. As reparações prometidas demoram, quando chegam, e muitos recorrem a endividamento próprio para consertar cisternas e rachaduras.
Nas conversas nas varandas e nos quintais, o assunto é sempre o mesmo, o medo de perder a casa, de ver o reservatório se romper de novo, de uma nova obra agravar o que já está ruim. A energia é vendida como verde, mas o cotidiano de parte dessas famílias é cinza, marcado por incerteza, ruído e poeira, em um cenário em que a Caatinga aparece mais como espaço disponível para projetos do que como território vivo habitado por gente.
Na sua opinião, os moradores do sertão nordestino deveriam aceitar os impactos dos parques eólicos como preço inevitável da energia limpa ou o Brasil precisa estabelecer regras mais rígidas para proteger a Caatinga e quem vive embaixo dessas hélices gigantes?

