No Acre, na Amazônia e nas grandes cidades, a ayahuasca se espalha de aldeias Huni Kuin a igrejas do Santo Daime, mistura medicina indígena, pesquisa científica e promessas de cura emocional para brasileiros exaustos pela depressão, ansiedade, vícios e sensação de vazio na vida cotidiana nas grandes metrópoles e periferias
Nos últimos anos, a ayahuasca saiu do isolamento das aldeias amazônicas e ganhou espaço em centros urbanos, igrejas e retiros espalhados pelo Brasil, atravessando milhares de quilômetros da floresta até capitais como o Rio de Janeiro. Entre buscadores de espiritualidade, pessoas em sofrimento psíquico e curiosos em busca de uma experiência intensa, o que une grupos tão diferentes é a promessa de olhar para dentro, enfrentar traumas e reorganizar a própria história com a ajuda dessa bebida indígena.
Desde 2006, quando neurologistas brasileiros começaram a estudar de forma sistemática o efeito da ayahuasca no cérebro humano em hospitais universitários, a substância passou a ser investigada em pacientes com depressão resistente, ansiedade, estresse pós traumático e dependência de drogas como cocaína, tabaco e crack. Ao mesmo tempo, a história recente da ditadura militar e da construção da Transamazônica ajudou a consolidar o uso ritual da ayahuasca como prática religiosa legal no país, puxando a bebida do campo da repressão para o debate público sobre saúde mental e liberdade religiosa. pasted
Da floresta amazônica ao asfalto das grandes cidades
A trajetória recente da ayahuasca começa no extremo oeste do Brasil, na região de Jordão, no Acre, onde povos indígenas como os Huni Kuin vivem às margens de rios cercados por floresta e pastagens abertas para o gado. Foi ali que equipes de reportagem acompanharam rituais conduzidos por um cacique que aprendeu cantos e rezas com o próprio pai e decidiu registrar as tradições para que não desaparecessem.
Na aldeia, a bebida é preparada a partir de dois ingredientes principais da floresta, cozidos por horas até se transformar em um líquido espesso e amarronzado. Uma vez por mês, ao anoitecer, adultos e crianças acima de seis anos se reúnem para beber ayahuasca em um ritual que mistura pinturas corporais, música e silêncio, sempre com forte ênfase na relação com a natureza e na proteção do território. A cena contrasta com a imagem urbana dos centros religiosos, mas ajuda a explicar por que tanta gente associa a ayahuasca a uma ideia de “medicina da floresta”. pasted
Rituais Huni Kuin, canto ancestral e medicina da floresta
Entre os Huni Kuin, a ayahuasca é apresentada como ferramenta de cura espiritual, de aprendizado e de conexão com seres da floresta. Caciques e pajés conhecem as plantas, os cantos e os desenhos corporais que representam cobras, árvores e entidades ligadas às águas e à mata. A bebida, chamada em sua língua por termos próprios, é sempre associada a paz, harmonia e amor, e o ato de vomitar é interpretado como purificação, não como efeito colateral indesejado.
Os rituais costumam ser marcados por longas noites de música, violão e cantos tradicionais. Com o tempo, a aldeia passou a receber turistas de várias partes do Brasil, atraídos pela combinação de paisagem amazônica, cultura indígena e experiências com ayahuasca. Para esse público urbano, a presença de um líder tradicional e de um contexto comunitário dá sensação de segurança e autenticidade, o que ajuda a explicar a crescente circulação de viajantes em busca de “medicina indígena” em regiões remotas da Amazônia. pasted
O que a ciência já sabe sobre a ayahuasca no cérebro
Enquanto rituais se multiplicam, laboratórios no Nordeste passaram a medir o que acontece no cérebro de quem bebe ayahuasca. Em Natal, um grupo de neurologia levou voluntários para o hospital, administrou doses típicas usadas em igrejas e fez exames de ressonância magnética durante o efeito da bebida.
Os pesquisadores descrevem três efeitos principais. O primeiro está ligado às visões, com atividade cerebral semelhante ao que ocorre durante o sonho, o que explica relatos de imagens vívidas, cores intensas e cenas simbólicas. O segundo efeito é um aumento da introspecção, a capacidade de perceber e nomear pensamentos e emoções de forma mais nítida. O terceiro é uma espécie de “desorganização controlada” na comunicação entre áreas do cérebro, abrindo espaço para que o sistema nervoso encontre novas conexões e perspectivas. pasted
Em estudos com pacientes que não respondiam bem a antidepressivos tradicionais, os médicos observaram melhora rápida nos sintomas de depressão já no dia seguinte à experiência com ayahuasca, algo incomum entre tratamentos convencionais. A substância ativa, o DMT, foi descrita como uma molécula endógena, sem desenvolvimento de tolerância e sem registro de overdose em doses ritualísticas, já que seria necessário consumir dezenas de litros para chegar a um nível considerado tóxico. Ainda assim, pesquisadores insistem que se trata de uma ferramenta potente, que provoca experiências intensas e precisa ser usada com acompanhamento, não como atalho mágico para problemas complexos de saúde mental. pasted
Santo Daime e a chegada da ayahuasca às grandes cidades
Longe da floresta, a ayahuasca ganhou outro nome e outra linguagem. Nas igrejas do Santo Daime, presentes em regiões como o Rio de Janeiro, a bebida é tratada como sacramento central de uma doutrina que mistura elementos da fé católica, religiosidade da natureza e matrizes afro-brasileiras. Em um templo fundado há cerca de 40 anos, um mestre recebeu em visões as orientações sobre a vestimenta dos fiéis e a forma do culto.
No espaço urbano, a ayahuasca passa a ser tomada em salões fechados, com filas organizadas, fichas de registro e doses medidas com rigor, enquanto homens e mulheres dançam, cantam hinos e seguem uma liturgia própria. A bebida orienta não só um transe coletivo, mas também regras de disciplina, horários e condutas dentro e fora dos rituais, o que atrai pessoas que dizem buscar estrutura para enfrentar vícios, crises pessoais e limites emocionais. pasted
Depressão, vício e busca de ajuda espiritual
Parte do público que chega às igrejas de Santo Daime relata histórico de uso abusivo de drogas. Um frequentador que hoje atua como tatuador na Rocinha, maior favela do Rio de Janeiro, descreve um período de consumo intenso de cocaína, álcool e noites em claro. Ele afirma que parou de usar drogas depois de entrar para a igreja, seguindo rituais regulares com ayahuasca e uma rotina de trabalho espiritual.
Antes das cerimônias, novatos são orientados sobre o que esperar, inclusive sobre o risco de experiências difíceis e a impossibilidade de “parar” o efeito da ayahuasca no meio da sessão. Líderes alertam que a substância pode causar vômito e exigir esforço físico e emocional. Na visão de alguns dirigentes, o Santo Daime seria o “antígeno da droga”, justamente porque não desperta comportamento de busca compulsiva, mas confronta o participante com questões que ele preferiria evitar. A recomendação é clara: quem participa precisa estar pronto para encarar o que vier. pasted
Vomitar, purificar, ver e sentir: como o corpo atravessa o ritual
Em aldeias e igrejas, o corpo é parte central da experiência com ayahuasca. A bebida é descrita como terrosa, amarga, servida em copos de tamanhos diferentes para adultos e crianças. Depois de cerca de uma hora, muitos participantes relatam alterações visuais, mudança na percepção do espaço e mergulhos em cenas internas. Em seguida, o vômito chega para parte do grupo, que interpreta o ato como limpeza de emoções, pensamentos e “energias” acumuladas.
No caso dos Huni Kuin, o amanhecer após a cerimônia é marcado por pintura corporal com símbolos de animais e espíritos da floresta. Em centros urbanos, o dia seguinte costuma ser associado a cansaço e necessidade de descanso, mas também à sensação de ter atravessado algo intenso. O discurso recorrente é de que a ayahuasca não permite empurrar emoções para baixo do tapete, obrigando o participante a olhar para o que evita no cotidiano, seja tristeza, medo, culpa ou lembranças traumáticas. pasted
Entre fé, terapia e mercado espiritual
O crescimento da ayahuasca no Brasil também movimenta economias locais. Líderes indígenas vendem pinturas, recebem turistas e tentam transformar a visibilidade dos rituais em recursos para proteger a floresta. Igrejas urbanas ampliam o número de fiéis e planejam se expandir para outros países. Pesquisadores avaliam que, com mais pessoas buscando substâncias psicodélicas como alternativa terapêutica, cresce também a responsabilidade de informar sobre riscos, limites e contextos adequados de uso. pasted
Ao mesmo tempo, o fato de a ayahuasca ser legal para uso ritualístico no Brasil, em um país conservador em vários aspectos, mas extremamente espiritualizado, abre espaço para disputas sobre quem pode servir a bebida, como regular centros urbanos e até que ponto é aceitável cobrar por experiências que se apresentam como cura e caminho de autoconhecimento. Entre a floresta e o asfalto, a linha que separa espiritualidade, terapia e negócio se torna cada vez mais fina, e é nesse ponto que se explica por que tanta gente procura a ayahuasca em busca de um sentido que falta na rotina.
Na sua opinião, a ayahuasca está mais perto de ser uma aliada legítima na saúde mental e na espiritualidade dos brasileiros ou de se transformar em mais um produto de mercado para quem busca respostas rápidas em meio à crise de sentido?

